Uma Arte
A arte de perder não é nenhum mistério; Tantas coisas contêm em si o acidente De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério: Lugares, nomes, a escala subsequente Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero Lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império Que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
Tradução de Paulo Henriques Britto
O poema que abre o post de hoje é uma das maiores obras da poesia americana, considerado, inclusive, o melhor poema de Elizabeth Bishop, a aniversariante do dia, que faria hoje 107 anos. Bishop nasceu em 1911, na cidade Worcester, Massachusetts. Perdeu os pais muito cedo, viveu entre casas de parentes maternos e paternos, sempre se sentindo muito rejeitada. No ano de 1934, formou-se em Vassar College, Nova York, engatando logo depois uma viagem por alguns países da Europa e da África, sobre os quais escreveu em seus primeiros poemas. Em 1951, a solitária poetisa deixa os Estados Unidos para passar uma temporada no Brasil em busca de inspiração, descanso e fuga da realidade, temporada essa que se estendeu por 20 anos, depois de Bishop se apaixonar pela arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares.
Elizabeth Bishop, enquanto esteva no Brasil, ganhou o renomado prêmio Pulitzer em 1956 pela coletânea Poems: North & South. Aliás, o período brasileiro da vida contida e discreta da poetisa foi retratado pelo filme Flores raras, de Bruno Barreto (2013), com enfoque especial em sua relação com Lota. A bela e trágica história de amor entre as duas fortes mulheres é representada por Glória Pires no papel da arquiteta brasileira, e Miranda Otto como Elizabeth. O longa aborda a relação homoafetiva com uma delicadeza e verdade extremas, sem estereótipos ou idealizações. Confira o trailer:
Como pano de fundo do amor entre as duas mulheres, há a questão do Golpe de 1964, com a deposição do então presidente João Goulart e a tomada do poder pelos militares. O acontecimento suscitou divergências ideológicas entre a americana e a brasileira: enquanto Lota comemora a intervenção militar, Bishop é totalmente contrária ao fato, uma vez que, para uma estadunidense nacionalista, os brasileiros comemorarem o fim de sua liberdade é “fora de proporção”, como ela fala no filme. Entretanto, acima de qualquer questão política, o longa é sobre amor, cumplicidade, tolerância, poesia, vida e, principalmente, sobre perdas.
Elizabeth Bishop perdeu o pai muito cedo, viu a mãe ser internada com surtos psiquiátricos, não criou um sentimento de lar por viver em muitos lugares diferentes durante a infância, abraçou a solidão e foi tentar perdê-la no Brasil: o que conseguiu, mas perdeu o Brasil anos depois ao fugir de Lota. Enfim, perdeu a própria Lota quando a arquiteta faleceu na casa da poetisa nos Estados Unidos. Diante de todas essas adversidades, foi um exemplo de resistência: ela lutou contra a bebida, contra a depressão, contra o preconceito e deixou por escrito suas impressões do mundo, com um toque pessoal de reconforto e sabedoria.
Seus poemas são conhecidos por trazerem observações precisas e comedidas do mundo exterior e seu refinado tom de reflexão. Ao mesmo tempo, evidenciam certa confusão e ansiedade em relação a temas como sexualidade, política, os limites da imaginação, o destino do ser e a descrença na essência humana – temas comuns da poesia norte-americana contemporânea (Robert Dale Parker, 1988).
Uma Arte, o poema que aparece no começo do post, é uma de suas obras mais conhecidas e reproduzidas ao redor do mundo. Há referências a ele em alguns filmes de Hollywood, e ele certamente toca muitos leitores, uma vez que a questão da perda é universal e inerente ao humano. O livro Poemas Escolhidos De Elizabeth Bishop estará disponível em breve na nossa biblioteca, enquanto isso, alguns poemas estão disponíveis aqui.
Em seu centésimo sétimo aniversário, o conselho mais bonito que Elizabeth Bishop poderia deixar para o mundo:
“Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.”
Livro: Poemas Escolhidos De Elizabeth Bishop
Autora: Elizabeth Bishop
Tradutor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 416
Ano: 2012