Hoje o Blog do Uirapuru publica um texto diferente para contribuir com um tipo de debate que de fato informa e que não visa difundir medo, ódio nem intolerância. A professora Marisa Lajolo gentilmente disponibilizou uma bem-vinda reflexão sobre o assunto, que segue abaixo. Marisa é uma das principais estudiosas de literatura infantil no Brasil: é pesquisadora, professora universitária vinculada à Unicamp e ao Mackenzie e uma referência em estudos sobre Monteiro Lobato, além de mãe e avó, como ela conta em seu texto. Vale muito a leitura!
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Conversando com mães e mestres, me reconheço nos interlocutores da conversa. Sou professora, sou mãe e sou até avó. Ao longo da construção dessas identidades, aprendi muita coisa. Muita mesmo. Coisas maiúsculas, da vida em geral, e minúsculas, miudezas do dia a dia.
Particularmente no que respeita à leitura – parte maior de minha profissão –, aprendi que não podemos nunca, para o bem e para o mal, ter certeza de como filhos, netos e alunos, de qualquer idade, vão interpretar o que leem. Na verdade, a imprevisibilidade de interpretações vai bem além do círculo familiar e escolar. Não sabemos – e nem podemos saber - como nossos vizinhos, nossas colegas de trabalho, os transeuntes com que cruzamos nas ruas e aqueles com quem dividimos o banco do ônibus interpretam o que leem na revista, o que lhes chega pela internet, o que veem nas novelas, o que ouvem no rádio.
De novo, para o bem e para o mal.
Mas tem quem não concorde com isso e creia que textos têm apenas “uma” interpretação: a deles. E, quando podem, obrigam todos a agirem segundo a “sua” interpretação .
Expulsam, por exemplo, os caçadores da história de Chapeuzinho Vermelho, porque matar o lobo seria antiecológico. Proíbem a leitura de Madame Bovary e processam seu autor porque creem que o livro defende o adultério. Vetam certas HQs porque elas incentivariam atos de violência. Aconselham alterações na história de Cinderela, porque a figura da madrasta pode inspirar desafeto pela segunda esposa do pai. E condenam a leitura de Harry Potter porque a história pode favorecer crenças satânicas...
E assim vai... infelizmente !
Tanto blá-blá-blá vem a propósito do livro O menino que espiava pra dentro (editora Global), de Ana Maria Machado.
A pergunta de um menino à mãe gerou, nas redes sociais, protestos contra o livro: ao lado de ofensas graves à autora, vêm recomendações de que se evite a leitura dele e - radicalizando - que sua circulação seja proibida. Tais posts têm o seu contrário: são seguidos de elogios e opiniões favoráveis ao livro.
E o que conta o livro O menino que espiava pra dentro?
Conta a história de Lucas, uma criança daquelas que adora sonhar acordada. Ou, como diz a avó dele, que adora “espiar pra dentro”. Espiando pra dentro, Lucas vive um faz de conta: visita ilhas desertas, brinca na floresta, vê chuvas de meteoros brilhantes, voa com fadas... Gosta da experiência, quer prolongá-la e acha que, se se engasgar com um pedaço de maçã (como ouviu na história Branca de Neve), pode prolongar muito seu mergulho no mundo da fantasia. De noite, em seu quarto, morde uma maçã, se engasga e sonha. Sonha sonhos lindos. Até que, na manhã seguinte, sua mãe o acorda para a escola...
Esta é a cena que, para a mãe de um menino que leu o livro, inspira e incentiva suicídio infantil.
Discordo da interpretação. E me pergunto que tipo de leitura do livro de Ana Maria conduz a essa interpretação. E não acho nenhuma.
Mas... leitor é leitor e, como se disse ali em cima, tem todo o direito de interpretar o que leu. O problema começa quando um leitor, instalado numa situação que lhe confere alguma autoridade - pais e professores, por exemplo -, estabelece que sua interpretação é a única possível. E, a partir da autoridade de que desfruta, sai proibindo e condenando o livro que gerou tal interpretação.
Claro que pais devem se interessar muito pelo que seus filhos leem. E esse interesse começa pela leitura. Leitura dos livros que os filhos estão lendo e de muitos outros livros. E pela conversa. Conversa com os filhos sobre o livro. Ouvindo o que eles acham e dizendo o que se acha. Como se discute novela enquanto se faz as unhas ou se discute um lance do jogo enquanto se corta o cabelo.
E o que se pode discutir sobre Lucas, esse "menino que espiava para dentro"?
Eu, adulta, mãe, avó e professora, me encantei com o livro pelo que ele me mostrou sobre a importância da imaginação. Fiquei pensando que nós, seres humanos, uma sábia mistura de fisiologia e imaginação, quando adultos, refreamos a fantasia - o que pode tornar nossa vida mais sem graça...
Penso que, ao contrário da interpretação que alguns leitores deram à história, Lucas sabe muito bem que imaginação é imaginação e realidade é realidade. Tatá, o amigo que ele inventa, talvez seja o outro lado dele mesmo, o Lucas pé-no-chão, que sugere limites para a fantasia, dissuadindo-o, por exemplo, de ficar para sempre no mundo da imaginação.
Lucas sabe bem o que está fazendo...
O exercício da imaginação é profundamente pessoal, embora a gente possa mergulhar na imaginação nas arquibancadas de um jogo de final de campeonato. Ou em espaços apertados e privados, debaixo da mesa, ou debaixo das cobertas na cama dos pais, como faz Lucas. Não penso que a busca de espaços fechados e solitários para dar largas à fantasia seja preocupante.
Mas este blá-blá-blá está ficando comprido demais.
Voltando à história que Ana Maria Machado conta, também me seduziu o cuidado da voz que a conta, embalando seus leitores em ritmos poéticos que sonorizam passagens do mundo da fantasia com rimas delicadas. E, para completar, o volume é um objeto muito bonito. Ilustrado por Alê Abreu, suas páginas são fartamente coloridas e desenhadas. A representação de Lucas é sempre luminosa, alegre, e a de seu amigo Tatá, muito divertida.
Na última página, um perfil urbano construído com retalhos de papel impresso, ao lado do menino empinando um papagaio e seguido pelo seu cachorro, expressa visualmente a sabedoria do trânsito entre imaginação e realidade.
E, a meu ver, desaconselha e desautoriza interpretações que encontrem no livro um Lucas suicida...
Que tal ler o livro para conferir? Acho que pode ser uma boa ideia!