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Paula Lima

Carta aberta aos povos indígenas brasileiros


*Esta carta foi escrita por estudantes do 3º ano do Ensino Médio e lida no encerramento do Sarau 2019, evento literário organizado e produzido pelos alunos do Médio do Colégio. Foi gentilmente cedida pela professora Mônica Miliani Martinez para publicação no Blog.


Crédito: Susana Costa (mãe da aluna Ana Luiza Costa Neder)

Nove de outubro de 2019. Colégio Uirapuru. Encerramento de um sarau que ofereceu a todos, alunos e professores, a chance de homenagear nossos antepassados. Pedimos que ouçam nossa carta aberta, dedicada aos povos indígenas, honrando sua tradição majoritariamente oral; aproveitem para exercitar os ouvidos e o coração…

 

"Já de início é preciso contestar o imaginário social do "índio" - ou indígena brasileiro - e a representação (equivocada) sobre esse sujeito na sociedade brasileira. Essa representação social dos povos indígenas é permeada por um discurso colonial que lhes destina um espaço subalterno, periférico e marginal. O resultado é uma visão hegemônica estereotipada e distorcida: povos indígenas são atrasados, primitivos, preguiçosos, entraves ao desenvolvimento social e econômico do país. E o que índios são e podem ser de fato? Advogados, médicas, professoras, enfermeiros, cineastas, músicos, políticos, guardiões da floresta, mulheres, crianças, homens, líderes, gente comum. São e podem ser, enfim, tudo o que cabe na diversidade da sociedade brasileira. Afrontar a ideia do índio incivilizado, incapaz de acompanhar as tendências e mudanças do mundo, é fundamental". 


Abrimos essa carta aberta com a voz de uma das principais lideranças da luta pelos direitos dos indígenas, Sônia Guajajara, da terra Arariboia, no Maranhão. Abrimos essa leitura e unimos as vozes, já que somos o povo brasileiro, um povo que acredita na educação democrática e transformadora capaz de reconectar nossa ancestralidade, trazendo a cultura para o centro, para assim reconhecer nossa diversidade. Nessa noite, o objetivo central dessa reflexão é pensar a integração dos povos como cura/, não como domínio e silenciamento. 


A diversidade cultural indígena não é acessada por aqueles que não pertencem (ou fingem não pertencer) a essa lógica: o homem branco considera a vida indígena como feita a partir de uma única cultura, desconsidera suas diferenças, suas particularidades, elementos que fazem da aura indígena um universo particular de extrema beleza. Talvez seja por isso, como nos contou Daniel Munduruku, que a palavra "índio" - um apelido generalista, carregado de uma memória excludente - foi imposta como uma maneira de afastá-los da sociedade brasileira. Não existem índios no Brasil - há, sim, o povo Guarani, o povo Kaingang, o povo Munduruku, o povo Tupinambá, o povo Yanomami, entre tantos outros. 


E, debruçados sobre a nossa história como nação, perguntamos: existe uma ação mais violenta que impedir um povo de falar sua própria língua? Não, não existe. A nossa língua, que deveria se chamar Língua Brasileira, tem caráter híbrido e multifacetado. Até o século XVIII, a linguagem, enquanto elemento simbólico e constitutivo de qualquer comunidade linguística, era um elemento de diferenciação da colônia brasileira relativamente à metrópole portuguesa: de um lado, o Português, como língua da administração, das autoridades, dos donos das capitanias, dos religiosos; de outro, as inúmeras línguas indígenas, entre elas a língua Tupinambá, falada na costa, genericamente chamada de língua brasílica, e a língua geral, com fins de catequese, na tentativa de padronizar uma comunicação que por si só é excludente, pois o Brasil nunca foi uma unidade - ele sempre foi/ é/ e será/ diverso. 


O que se pode notar, com clareza, é que o bilinguismo, entre o português e a língua geral, tinha uma função central: incluir os índios na civilização desde que as diferenças socioculturais fossem apagadas. Sim, apagadas. Tão apagadas que, em termos históricos, aos portugueses é natural e óbvio ter a língua portuguesa como língua nacional: português tanto designa o povo quanto a nação. Na colônia Brasil, no entanto, não se reproduziu exatamente a naturalização do que havia na metrópole, embora a colonização estivesse voltada exatamente para tal reprodução.


Chega! Chega! Chega de apagamento! Porque a terra é um direito de todos! Terra é força. Terra é história. Terra é cultura. Terra é vida. O direito indígena à terra é, antes de mais nada, a sua sobrevivência e a nossa responsabilidade, e a invasão das suas terras é, assim, uma violação aos direitos. A infração de terras indígenas é uma involução em nossa história, é desconsiderar conquistas, é desumanizar, é desconstruir, é romper. É disseminar a violência e o ódio, assim como foi no passado, justamente por não rememorar a história, por não trabalhar a memória coletiva, tornando-a distante, efêmera, esquecida. E erros esquecidos estão fadados a serem repetidos. Em tempos de revisionismo científico, contestação e obscurantismo histórico, é mais que necessário, é um dever lembrar, relembrar para manter, construir e reconstruir.  Sob o peso da história, somos réus. Somos também sujeitos e objetos, regemos e somos regidos, construímos e somos construídos, portanto, somos também responsáveis. 


Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, consta no Artigo 4°: "a escravatura/ e o trato dos escravos/, sob todas as formas/, são proibidos". No passado de nosso país, tratamos como selvagens o diferente, exploramos suas riquezas e suas fraquezas, escravizamos em nome do lucro. Sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Artigo 231, os índios são tardiamente reconhecidos pela "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam", competindo, ainda "à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Embora essa lógica seja garantida por lei, a prática aponta para uma realidade sombria: esse direito não passa de um privilégio… 


Aqui, em 2019, abrimos a caixa de pandora da destruição com a seguinte pergunta: por que, então, devemos demarcar as terras indígenas? Demarcar para assegurar direitos. Demarcar para relembrar a história. Demarcar para garantir o futuro. Deve-se demarcar legalmente, porque contribui para o ordenamento fundiário do Governo Federal e dos entes federados, procurando integrar para atender às

necessidades e políticas indígenas. Deve-se demarcar humanitariamente, porque há a promoção da diversidade cultural e étnica para uma sociedade plural, garantindo que não haja calcificação do ódio cego, do obsoleto preconceito e de intenções enviesadas em nosso desenvolvimento. Deve-se demarcar eticamente, porque devolve ao dono da terra o seu direito primeiro de ali existir. A demarcação é uma ação política que assegura a dignidade indígena e respeita o processo cultural que nos trouxe até aqui… 


Nesse contexto tão sensível, é imprescindível o reconhecimento do nosso passado perturbador, marcado pela violência e pela destruição. Por isso,


●  pedimos perdão por invadir as terras indígenas, as quais mantinham o meio ambiente preservado e próspero para a sobrevivência de novas gerações; 

● pedimos perdão pela grande quantidade de laços culturais destruídos, cujos costumes e tradições foram apagadas; 

●  pedimos perdão por todos os nossos irmãos mortos em guerras e conflitos;

●  pedimos perdão pelas mortes inaceitáveis causadas pela luxúria da terra, da posse, do dinheiro; 

● pedimos perdão pelo desmatamento na Amazônia, pela escravidão de mulheres indígenas, pela apropriação cultural indevida;

● e pedimos perdão pelo genocídio indígena, pelo discurso descabido e irresponsável de alguns governantes.

 

Infelizmente, não há como voltar no tempo, mas há como aprender com a resultante desses crimes, que atacaram nossos antepassados - aprender com o passado é uma forma de evitar falhas no presente, como já dito. Por isso, pedimos perdão, em nome de toda a história do povo brasileiro, cuja existência jamais teria atingido os níveis atuais sem a existência indígena. Somos gratos porque ainda podemos bloquear a repetição desses erros, sendo o primeiro passo para isso o reconhecimento que falhamos humanitariamente. Precisamos defender a nossa jovem democracia, pois ela está longe de ser apenas um valor imaterial: ela retrata a soberania popular no respeito à reivindicação e à proteção dos direitos do cidadão, pois é nela que construímos os verdadeiros laços de solidariedade ao próximo.


Obrigada pela chance de escrever esse texto, de ler sobre a nossa cultura e de dividir esse momento com todos vocês. Obrigada UNESCO, por eleger as línguas indígenas como marco das homenagens em 2019. Obrigada aos ouvidos que escutam e não apenas ouvem. Obrigada pela oportunidade de encerrar o sarau 2019 com uma mensagem de força e de esperança, que anseia por dias melhores. Desejamos que esse grito ecoe não apenas em nossa escola, mas em todos os lugares onde a humanidade existir. Porque hoje: o Uirapuru é terra indígena!!!


Escritores: Amanda Kappke Lucano, Ana Luiza Costa Neder Serafini, Ana Paula Guzzela Maluf Dias, Bernardo Henrique Mendes Corrêa, Daniela Annunziata Masaro, Gabriela Garcia Blanco, Giovanna Mazuqui Lourenço, Juliana Latuf, Laura de Almeida Mendes, Maria Luiza Tenório de Aguiar, Santiago de Matos Fernandez Perez, Thaís Ayumi Birque (estudantes da Terceira Série do Ensino Médio) e professora Mônica Miliani Martinez



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