“E é nesse sentido que temos aqui na OSE* a nossa utopia pedagógica. Alguma coisa que ainda não é, porque se encontra no horizonte, mas perfeitamente realizável e que orienta a nossa ação”.
Especialmente nestes tempos, compartilho com toda a comunidade Uirapuru, o texto “Utopia Pedagógica e Corpo Docente” escrito, em novembro de 1983, pelo professor Wlademir dos Santos, fonte inspiradora do pensamento pedagógico do Colégio Uirapuru. Divido com vocês também, o meu orgulho de continuar pensando, depois de tanto tempo (o texto é de 1983), que é preciso aprender, mas desaprender para aprender de novo e de novo e, só assim, mudar o horário para acender o lampião, jogar o lampião fora e adotar a luz elétrica e estar aberto a substituir as lâmpadas incandescentes por outras de led, mas seguir iluminando o caminho à nossa frente e também o horizonte, pois o fazer pedagógico é o da prática, mas a pratica só é transformadora a partir de fundamentos teóricos norteadores e da capacidade de sonhar e seguir inovando; evoluindo; construindo a Educação do Futuro.
*berço do Colégio OSE Uirapuru e depois Uirapuru
UTOPIA PEDAGÓGICA E CORPO DOCENTE
Utopia
Há duas maneiras de fazer as coisas neste mundo, quaisquer sejam elas: uma é continuar a rotina, repetindo o que outros fizeram e vêm fazendo, sem qualquer questionamento; outra é tentar ver outras soluções, outras alternativas para a construção de um mundo melhor, mais justo, mais humano. É o conservadorismo versus o progressismo.
Há pessoas que passam toda a sua vida fazendo as mesmas coisas, sem qualquer alteração, sem perceber a finalidade de seus atos, atos que continuam sendo repetidos mesmo sendo já desnecessários. Saint Exupéry ilustrou maravilhosamente esse tipo na parábola do “acendedor de lampiões”: o homem continuava a acender e a apagar o lampião a cada minuto porque no seu planeta essa era a duração da noite e do dia. O nosso povo tem uma história semelhante – a do ferroviário. Ao aposentar-se depois de 35 anos de trabalho, o velho ferroviário ia ser substituído por um moço e, então, travou-se o seguinte diálogo com o velho falando ao novo:
– Cada vez que uma composição chega na estação você a percorre batendo em cada roda com este pedaço de ferro – veja o som que produz.
– Sim. E por quê se faz isso?
– Ora veja. Há trinta e cinco anos faço isso e não sei porque e você chega hoje e já quer saber!
Outra maneira de fazer as coisas é assumindo uma postura crítica que implica em questionar, em examinar a maneira mais simples, mais eficiente de executar a tarefa. Questionar até a própria existência da tarefa. Se você olhar o mundo à sua volta, verá que poucas coisas devem ser feitas sempre da mesma maneira: por exemplo, comer pela boca. Até o “ver pelos olhos” que a natureza nos dotou, o homem foi capaz, mercê de sua inteligência, de substituir pelo “ver pelo tato” exemplo. Na verdade, muito poucas coisas devem ser feitas de maneira imutável, decorra quanto tempo decorra. Isso significa que o mundo e, em consequência, a história, são feitos pelo homem e este pode imprimir ao mundo e à história a forma que desejar.
Quando se assume essa postura de imaginar um mundo novo, melhor, mais justo, mais humano, começa-se a organizar o que Paulo Freire chamou de “inédito viável” e que, em nosso caso particular, chamamos de nossa Utopia.
A palavra utopia tem suas origens no grego – u (nenhum) e topia (lugar) e as pessoas de um modo geral entendem utopia como sendo alguma coisa que é inexequível, que não pode ser realizada. Ser utópico, nesse consenso geral, é tentar irresponsavelmente fazer alguma coisa que não é possível de ser realizada.
Há necessidade no entanto de distinguir a “atitude utópica” do “pensamento utópico”. Aquela imagem que o senso comum faz de utopia corresponde à atitude utópica. Significa esta que um indivíduo sem pesar bem as circunstâncias, sem considerar corretamente a realidade se dispõe a realizar alguma coisa que, fatalmente, conduzirá a nada. A atitude utópica, porque é atitude inconsequente, deve ser evitada.
Pensamento Utópico tem outro sentido. Corresponde à criação de um projeto que não se realiza agora, aqui, mas que se estabelece como meta ou alvo a ser atingido. É assim uma espécie de instrumento de trabalho.
A utopia (pensamento utópico) como instrumento de trabalho tem algumas características:
a) nasce de uma insatisfação com o que existe;
b) considera a realidade e as variáveis intervenientes;
c) sabe que o possível racionalmente, pode existir;
d) organiza um projeto que se realizará no tempo.
É assim uma espécie de horizonte ao qual nos encaminhamos e que serve de guia para a nossa ação.
As utopias têm muita importância para o homem. Não fossem as utopias, não fossem os que foram capazes de se projetar para o futuro, o homem ainda estaria nos primórdios da civilização. Observe que não ter utopias é conformar-se com o que existe, é conservar o que existe. No fundo, (quando não se considera a utopia) ser exequível é buscar a não transformação, isto é, a conservação.
Todos os que estamos insatisfeitos com o mundo, todos os que queremos de alguma forma proceder a mudanças, porque não nos conformamos em continuar utilizando fórmulas já repetidas muitas vezes, quase sempre gastas, temos que ter a nossa utopia.
E é nesse sentido que temos aqui na OSE a nossa utopia pedagógica. Alguma coisa que ainda não é , porque se encontra no horizonte, mas perfeitamente realizável e que orienta a nossa ação. Alguém que caminha olhando para o chão apenas, não tropeçará em nenhuma pedra mas, certamente, não sabe onde chegará; é preciso caminhar olhando para a frente, firmando o horizonte que se nos apresenta. É possível que aí tenhamos alguns tropeços, pedras em nossos caminhos, mas estaremos caminhando sempre para um lugar bem definido.
Corpo docente
Costuma-se denominar “corpo docente” ao conjunto de professores de uma escola. Mas será que o fato de estarem trabalhando numa mesma escola torna o grupo de professores um “corpo docente”?
Certamente não. É necessário mais que a simples proximidade física para que um grupo de professores se transforme num verdadeiro corpo docente. Assim como um grupo de músicos não constitui necessariamente uma orquestra, um grupo de professores não é necessariamente um corpo docente. Um grupo de músicos só se transforma em orquestra quando todos tocam a mesma música, imbuídos dos mesmos propósitos, sob a batuta de um maestro. Tocando instrumentos diferentes, com partituras diferenciadas (o que é normal numa orquestra), a música só será ouvida como tal se a ação for harmônica. Num verdadeiro corpo docente é isso que deve acontecer – os professores devem agir harmonicamente, segundo princípios comuns.
Um grupo de professores que não trabalhe como um corpo docente, isto é, com uma unidade de propósitos, segundo princípios comuns, produzirá qualquer coisa, menos educação. A sua ação não será apenas ineficaz – será, também, nociva.
Por isso é o nosso propósito que o CEI-OSE tenha um verdadeiro corpo docente, sob a regência de um coordenador. Ainda que haja diferenças individuais entre os professores (e elas existem), decorrentes de formação, experiência anterior, temperamento, é necessário que a ação seja baseada em princípios comuns para que seja harmônica.
Mas se os princípios comuns são necessários, eles não são suficientes. Antes de mais nada é preciso que os professores estabeleçam entre si uma teia de relações que chamamos de dialógica. E que é isso?
As pessoas que convivem em certo espaço estão em relação na medida em que devem se encontrar umas com as outras. Mas essa relação pode se dar sob o manto das aparências onde um omite o seu pensamento para não magoar o outro ou para não se diminuir diante do outro. As pessoas nessa relação não têm o encontro autêntico ou diálogo.
Num encontro autêntico (ou diálogo), as pessoas se apresentam como são e não como gostam de parecer ser; não temem magoar o outro e não se deixam magoar. Num encontro autêntico não há lugar para mal-entendidos, para subterfúgios, para tergiversação. Só no momento em que se consegue isso é que se instauram as condições para que um grupo atue em forma de equipe.
Um discurso comporta normalmente, duas leituras: a denotativa, que é aquilo que foi dito, aquilo que está expresso, e a conotativa, aquilo que não foi dito mas foi transmitido. Na diplomacia a conotação assume uma importância muito grande – o que está escrito não tem muita importância pois o importante é o que está nas entrelinhas. Entre pessoas isso ocorre normalmente, levando a desencontros, desentendimentos. Na verdadeira relação dialógica não há lugar para a conotação – tudo deve ser denotado; nem se deve procurar subentendidos, nem se deve transmitir mensagens subentendidas.
Conclusão
Estes dois aspectos abordados neste capítulo são fundamentais: a fixação de um ideal pedagógico e o verdadeiro corpo docente.
A utopia vai permitir que todos pensem a partir de princípios comuns que todos os envolvidos se imbuam dos mesmos propósitos. Isso não quer dizer que pretendamos transformar o nosso corpo docente num batalhão onde todos marcham com o mesmo ritmo e tempo, mas que a unidade de princípios como base para o pensamento que organiza a ação conduza a uma atividade harmônica.
E por isso a relação dialógica é fundamental. É necessário que professores e coordenador sejam os mais claros uns com os outros, sem temor de dizer o que deve ser dito, sem se magoar ou se diminuir com o que lhe venha a ser dito. E não há motivo para temer tal postura. Coordenador e professores estão aqui porque reúnem virtudes suficientes que os credenciaram a trabalhar no CEI-OSE
Texto publicado em novembro de 1983 / Revista Proposta/OSE, nº24.
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