Dona de um estilo inconfundível, a escritora capaz de traduzir o nó na garganta em palavras completaria cem anos
Autoria de Gabriella Monteiro Pezatto Gomes, professora do nono ano do Ensino Fundamental, licenciada em Letras Vernáculas e Clássicas e mestra em Estudos da Linguagem pela UEL.
Em 10 de dezembro, comemoramos os cem anos do nascimento de Clarice Lispector, um dos maiores nomes da literatura brasileira do século XX. Romancista, cronista, contista, jornalista, tradutora e diplomata, Clarice imprimiu em suas obras um estilo inconfundível, cujas narrativas, sempre imersas nos pormenores cotidianos, denotam uma literatura intimista, psicológica e introspectiva, com mergulhos no pensamento e na condição humana, principalmente no tocante ao universo feminino. Antonio Candido, professor e crítico literário definiu, ainda sobre o primeiro romance da jovem escritora, sua incrível capacidade em estender "o domínio da palavra sobre as regiões mais complexas e mais inexprimíveis, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente" (2004, p. 127).
Vida e obra
Nascida em Tchetchelnik, na Ucrânia, filha de um casal de origem judaica, Clarice era ainda bebê quando seus pais, fugindo da constante perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa, vieram buscar refúgio no Brasil. Inicialmente, a família fixou moradia na cidade de Maceió, mas logo se mudou para o Recife em busca de melhores condições de vida.
Foi no tradicional bairro da Boa Vista, na capital pernambucana, que a menina logo adquiriu gosto pelo universo das letras. Leitora assídua de Monteiro Lobato, Clarice não tardou em começar a escrever pequenos contos. Logo em seguida, devido à prematura morte da mãe, em 1930, seu pai, que conseguia o sustento da família graças à venda de roupas, decidiu pela mudança de endereço novamente, dessa vez, para o Rio de Janeiro, instalando-se no bairro da Tijuca, local onde a menina cresceu.
“Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já”.
“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada”.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 1994.
No ano de 1939, Clarice matriculou-se na Faculdade Nacional de Direito, época na qual também começou a trabalhar como redatora da Agência Nacional e do jornal A noite. No ano seguinte, foi publicada, no semanário Pan, sua primeira narrativa conhecida, o conto Triunfo. Nessa mesma época, aos vinte anos, a jovem escritora viu-se órfã também de pai. Um ano depois, publicava seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, cuja narrativa foi considerada surpreendente para os padrões da época, devido ao trabalho de ruptura da ordem cronológica e à fusão da prosa à poesia.
A obra foi bem recebida pela crítica nacional e lhe valeu o prêmio Graça Aranha de melhor romance. Em 1943, enquanto ainda cursava a faculdade, Clarice conheceu Maury Gurgel Valente, com quem começou a namorar. Ao fim do último ano do curso superior, o casal decidiu selar a união e, devido à profissão exercida pelo marido, de diplomata, Clarice passou a acompanhá-lo por viagens a diversos países, deixando para trás o nome em ascensão no jornalismo carioca.
Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 1977.
Durante o tempo em que esteve fora do Brasil, Clarice jamais deixou de escrever. Em 1946, morando em Berna, na Suíça, publicou o romance O Lustre, no qual se consolidaram os elementos narrativos que se tornariam a marca de suas produções: o fluxo de consciência e o enredo sem estrutura definida. Em 1949, foi publicado A Cidade Sitiada, romance que, anos depois, a própria escritora classificaria como o mais difícil de escrever.
Nesse mesmo ano, deu à luz seu primeiro filho, Pedro, época na qual também se dedicou à escritura de contos, publicando, em 1952, Alguns Contos. No mesmo ano, durante sua estada no Rio, sob o pseudônimo de Teresa Quadros, Clarice assinou para o semanário Comício uma coluna feminina, “Entre mulheres”. No ano seguinte, seu segundo filho, Paulo, nasceu em Washington, nos Estados Unidos. Em 1959, Clarice se separou do marido e retornou ao Rio de Janeiro na companhia dos dois filhos.
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 1971.
Em 1960, começou a escrever para os jornais Correio da Manhã e Diário da noite, assinando as colunas "Correio Feminino e "Só Para Mulheres". Nesse mesmo ano, lançou o livro de contos Laços de Família, obra que recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Nos anos seguintes, ainda publicaria os romances A maçã no escuro, A paixão segundo G.H e o livro de contos A legião estrangeira.
Em 1966, ao adormecer com um cigarro aceso, Clarice acabou sofrendo graves queimaduras, precisando realizar diversas cirurgias e, por pouco, não teve a mão direita amputada. Viveu reclusa nos anos seguintes, sempre escrevendo. No ano de 1967, lançou O Mistério do Coelhinho Pensante, seu primeiro livro voltado para o público infantil.
Sua última obra publicada em vida, A hora da estrela, em 1977, foi adaptada para o cinema, rendendo à atriz que deu vida à personagem principal, Macabéa, o Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim. Por complicações de um câncer de ovário, Clarice faleceu em dezembro de 1977, na véspera de seu aniversário de 57 anos.
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama – era lama, e nem sequer lama já seca, mas lama ainda úmida e viva era lugar onde remexiam com lentidão insuportável as raízes da minha identidade.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. 1964.
Estilo e crítica
Clarice Lispector é reconhecida nacional e internacionalmente pela críticaliterária como uma das maiores escritoras do século XX. Responsável por sofisticar a narrativa por meio do emprego de recursos e técnicas modernas como a análise psicológica, a ruptura espaço-temporal e o monólogo interior, a escritora também transitou por diversos gêneros com o virtuosismo de uma mulher a frente de seu tempo, cuja produção é, também, social, existencial e filosófica.
Sobre a importância de Clarice no cenário da literatura moderna, Antonio Candido afirmou que “A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais de nossa literatura” (2004, p. 131). De fato, o prenúncio de Candido se confirmou e, hoje, mesmo cem anos após seu nascimento, na intimidade de seus leitores, Clarice ainda vive.
Ela é tão livre que um dia será presa. Presa por quê? Por excesso de liberdade. Mas essa liberdade é inocente? É. Até mesmo ingênua. Então por que a prisão? Porque a liberdade ofende.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). 1978.
Principais obras
Perto do coração selvagem (1942)
O Lustre (1946)
A Cidade Sitiada (1949)
Laços de Família (1960)
A Maçã no Escuro (1961)
A Legião Estrangeira (1964)
A Paixão Segundo G. H (1964)
O Mistério do Coelho Pensante (1967)
A Mulher que Matou os Peixes (1968)
O Livro dos Prazeres (1969)
Felicidade Clandestina (1971)
Água Viva (1973)
A Imitação da Rosa (1973)
Via Crucis do Corpo (1974)
Onde Estivestes de Noite? (1974)
Visão do Esplendor (1975)
A Hora da Estrela (1977)
Um sopro de vida (Pulsações) (1978)
Veja também:
Programa especial sobre os cem anos de Clarice Lispector. TV Cultura. Acesso em 8 dez. 2020.
Site produzido pelo Instituto Moreira Salles em comemoração aos cem anos da escritora: Disponível em: https://claricelispector.ims.com.br/. Lançamento em 10 dez. 2020.
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Referências:
ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector: Com a ponta dos dedos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.
FRAZÃO, Dilva. Clarice Lispector - biografia. Disponível em: https://www.ebiografia.com/clarice_lispector/. Acesso em: 8 dez. 2020.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro, Rocco, 2009.
______. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro, Rocco, 1999.
______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.
______. Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: Modernismo. São Paulo, Cultrix, 2001.
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. São Paulo: Vozes, 1979.
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