Autoria de Leonardo Souza Flores, aluno do 2º ano C do Ensino Médio, do Colégio Uirapuru.
Foto: Rodrigo Marcondes/Garapa
É fácil vivermos em nossas bolhas. A comodidade de estarmos preocupados com nossos problemas, de ignorarmos situações que não nos trazem consequências diretas - ou pelo menos tentamos acreditar que não -, de vivermos por nós e para nós, sem olharmos para aqueles que não cruzam nosso caminho, nos faz gostarmos de permanecer em nossa zona de conforto. O mundo é lindo, cheio de arco-íris, doces… às vezes temos algumas nuvens cinzentas que entristecem o dia, mas logo o sol volta a surgir novamente. Ao ler o livro “Prisioneiras”, escrito pelo renomado doutor Drauzio Varella, toda essa ilusão, por menor que fosse, se esvaiu, e meus olhos se abriram para as diversas realidades que assolam nosso país.
Todo o enredo foi construído na Penitenciária Feminina da Capital (SP), durante o período de mais de uma década em que Drauzio foi médico-voluntário, ouvindo as histórias de cada detenta, analisando as divergências entre a cadeia masculina e a feminina. Apesar de este ser o terceiro livro da trilogia acerca do sistema carcerário brasileiro, foi o primeiro que eu li. Eu já sabia que era uma obra bem reflexiva, mas não fazia ideia do número de assuntos pertinentes que são trazidos: machismo, desigualdade social, uso de drogas, gravidez na adolescência… a lista é grande, tal como o impacto que atinge o leitor.
Na penitenciária feminina, as relações observadas pelo autor entre as detentas e seus familiares se diferem das observadas no Carandiru, por exemplo. Enquanto com os homens, foi possível observar filas imensas com mulheres e crianças, carregando sacolas pesadas com alimentos e outras coisas, esperando para ver seus maridos, namorados, etc, na cadeia feminina, são pouquíssimos os visitantes. E, chocantemente, nem mesmo a família das detentas as visitam! Elas são simplesmente renegadas; ou então visitar um outro familiar homem que também está preso é preferível a encontrá-las, como o caso de uma detenta que foi presa pelo erro do seu irmão.
A história é que o irmão havia escondido drogas atrás do guarda-roupa dela sem ela saber, e quando a polícia a encontrou, deu voz de prisão tanto a essa jovem, quanto ao seu irmão. Lamentavelmente, ela era, de acordo com a família, uma pessoa extremamente carinhosa, focada nos estudos, calma, e de uma hora para a outra, foi jogada em um ambiente que oprime, estressa e machuca. Infortunadamente, a presença de sua mãe é rara: ela nunca a visitava! Preferia visitar o outro filho, que estava em uma penitenciária a 280 quilômetros de São Paulo. Quando questionada sobre isso pela sua filha, a mãe apenas respondeu “você tem mais juízo; ele precisa de mim”.
Ao ler sobre isso, parei para refletir em como essa preferência está estruturada em nossa sociedade. A mãe desta jovem preferia acreditar que seu outro filho merecia maior atenção, que a jovem injustiçada tinha juízo e sabia tomar conta de si mesma. Mas como se manter são em uma cadeia, sem visita de ninguém, sem amor?
“A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira.” Varella, Drauzio.
Acreditar no ser humano é alimentar o futuro dessa raça, o futuro de nossos filhos, netos, bisnetos... A partir do momento que paramos de acreditar no que há de melhor nas pessoas, estaremos fadados ao sofrimento, à desgraça. Nossa sociedade tende a olhar para aqueles que cometem crimes como pessoas realmente ruins, que não merecem nem serem categorizadas como seres humanos; "bandido bom é bandido morto" é a marca registrada do ódio nutrido contra os detentos e as detentas. Felizmente, "Prisioneiras" me ajudou a abrir muito bem os meus olhos para analisar o que está por trás de toda essa população carcerária brasileira.
Não se trata apenas de uma má índole, de uma paixão pelo o que é errado. Muitas vezes as necessidades da vida te colocam frente a situações que exigem extrema força moral para superar. Pessoas como a "Negona" (como era conhecida na penitenciária), uma detenta apresentada no livro, que teve que abandonar seus estudos para sustentar suas três irmãs depois do falecimento de seu pai e de sua mãe, sofrem com as consequências de uma desigualdade social que assola a maior parte da população do nosso país. Essa mulher teve que trabalhar dia e noite para ter o que comer em sua casa, para que suas irmãs não tivessem que abandonar seus estudos tal como ela teve que fazer... até que, por fim, ela se voltou ao tráfico porque já não aguentava mais. Você pode até pensar que a minha visão é inocente, que as pessoas escolhem ir nesse caminho porque querem, porque não têm ética, etc, mas eu estou escolhendo acreditar no potencial humano das pessoas, no amor que a "Negona" nutria por suas irmãs ao ponto de trabalhar o dia inteiro para que elas não tivessem o mesmo destino que ela teve, para que elas pudessem conquistar uma vida financeira mais estável. É incrível ver como esse livro me fez furar minha bolha, incentivar meu lado empático e reconhecer meus privilégios.
Apesar de eu ser um jovem de classe baixa, carente de muitas coisas que apenas pessoas com boas condições socioeconômicas têm acesso, tendo lidado com a educação pública, o transporte coletivo urbano sem qualidade, etc, ainda assim pude reconhecer o quão privilegiado sou. Privilegiado por ser branco, por ser homem, por não ter que deixar os meus estudos para ir trabalhar, por ter um suporte familiar. Muitas vezes nós apenas reclamamos do que não temos, e ignoramos o que temos... As histórias trazidas neste livro evidenciam realidades que muitas vezes estão fora daquilo que conhecemos. Um exemplo disso é a educação sexual.
Eu fui orientado na escola e em casa acerca de relações sexuais, métodos contraceptivos; mas nem todos têm essa mesma orientação, e isso me torna um privilegiado novamente. Drauzio Varella comenta neste livro sobre as inúmeras detentas que têm cinco, seis, sete filhos, que engravidaram com onze, ou com treze anos. São coisas que nós achamos que não existem, ou negligenciamos, nos cegamos, mas que realmente existem, e muito! Essas meninas se tornam mães antes mesmo de terem passado pela puberdade; se tornam avós antes de atingirem os 30 anos.
“Na penitenciária, se atendo uma mulher de 25 anos sem filhos, há duas possibilidades: é infértil ou é gay.” Varella, Drauzio.
A leitura deste livro foi uma das melhores coisas que fiz neste final de ano. As realidades, os tabus, as negligências, os privilégios, são todos postos em evidência em uma narrativa que te cativa, te prende em um mundo com muitas reflexões. Afinal, numa sociedade repleta de desigualdade social, reconhecer nossos privilégios se torna fundamental para que possamos valorizar aquilo que temos e o olhar empaticamente para aqueles que não detêm as mesmas coisas que nós. Portanto, se você está à procura de uma expansão na sua consciência social, recomendo fortemente a leitura desta obra.
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Prisioneiras
Autora: Drauzio Varella
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 227
Ano: 2010
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