Entre o particular e o coletivo, o processo de identidade exige um grau elevado de conhecimento sobre si, suas raízes, sua história. Quando essa história foi perdida, as raízes, apagadas, e a sua versão de si mesmo é fabricada pelo outro, perde-se, por completo, a dimensão de quem se é. Em busca de um resgate da identidade asiática brasileira, o livro “Vozes Amarelas”, de Monge Han, apresenta aos leitores as vivências e violências de ser uma pessoa amarela no Brasil.
“Muitas vivências se perdem no mar conturbado da história”. Enquanto a superfície reflete, a partir de raios brilhantes estrategicamente posicionados, a história ocidental branca eurocentrada, há, submersa, uma série de narrativas ricas que compõem, também, esse oceano que é a humanidade. Essas histórias subjugadas, silenciadas e esquecidas vêm, nos últimos anos, em um movimento de ruptura e emergência diante de tudo que já foi contado e que se conhece como a história do mundo, dos países e da sociedade.
Nesse sentido, é justamente em busca do resgate de um legado amarelo brasileiro que surge “Vozes Amarelas”, publicado pela editora HarperCollins, em julho deste ano. Por meio das escritas e dos desenhos de Monge Han, a figura do descendente de imigrantes asiáticos no Brasil é delineada e as histórias singulares apresentadas esboçam vivências coletivas de gerações inteiras de amarelos brasileiros no país.
Monge Han, autor do livro "Vozes Amarelas" .
Monge Han é um ilustrador e designer, descendente de coreanos, e uma das principais vozes de divulgação do projeto antirracista amarelo da contemporaneidade. Seu sucesso se deu após viralizar nas redes sociais com a série de ilustrações “Criança Amarela”, que alcançou milhares de leitores - especialmente entre nós, amarelos - ao exibir experiências socioculturais vivenciadas ao longo de sua infância e adolescência como um amarelo brasileiro, como se autodenomina.
Páginas da história "Criança Amarela" liberadas em divulgação.
“Vozes Amarelas” surgiu, pois, como uma tentativa de aproximar os leitores das vivências de descendentes de imigrantes asiáticos no país, em especial provenientes da Ásia Leste, por meio de reflexões sobre identidade, ancestralidade e pertencimento. Em meio à efervescência de movimentos sociais, que ganham cada vez mais voz nas redes sociais, este livro representa uma porta de entrada para que se compreenda, num primeiro momento, o lugar a que os amarelos fomos submetidos na sociedade brasileira.
A obra é composta por cinco histórias em formato de quadrinhos - sendo duas inéditas e três adaptadas das mídias sociais do autor. É possível, pois, agrupá-las em dois eixos temáticos centrais, fundamentais para a compreensão da identidade amarela e da história renegada desse grupo social brasileiro.
O primeiro núcleo temático aborda as vivências coletivas do asiático no Brasil, apresentando elementos do cotidiano e do trato social a que são submetidos. Sob esse prisma, estão três das cinco narrativas. Duas delas merecem destaque: “Suni” trata da primeira geração de amarelos no país, crianças imigrantes ou os primeiros nascidos brasileiros da família, que viveram - e, em alguns casos, ainda vivem - em situações de vulnerabilidade extrema, seja financeira, sociocultural ou mesmo emocional. Por serem os mais novos da família, em geral são os primeiros a possuírem acesso ao português brasileiro e, portanto, atuam de tradutores de seus familiares desde uma idade muito tenra, assumindo responsabilidades que não lhes cabem. Além disso, o choque cultural e linguístico entre os ambientes doméstico e externo (materializado, a princípio, na escola) é componente decisivo na socialização e na construção da identidade e do pertencimento. Nesse sentido, “Suni” retrata a entrada de uma garota imigrante coreana na escola brasileira, em uma narrativa visual permeada de elementos importantes como a pobreza, a fome e a aversão ao estrangeiro, remontando a trajetória de nossos pais, avós e mesmo dos novos imigrantes asiáticos contemporâneos, que ainda sofrem com as mesmas mazelas.
A partir de um relato das gerações seguintes, “Criança Amarela” é destaque nesse primeiro eixo por apresentar uma série de ilustrações que abordam a jornada de um garoto amarelo brasileiro, já da segunda geração de descendentes, em seu processo de racialização. Acompanhamos a infância de microagressões e preconceitos velados de um menino que, desde o primeiro momento, não pertencia ao contexto social como as outras crianças. Estereotipado a partir de generalizações agressivas e xenofóbicas, o protagonista cresce em meio a uma busca constante de pertencimento que custa caro, e Monge Han narra a descoberta de sua identidade de maneira ao mesmo tempo particular e universal:
"como a discriminação contra pessoas pretas é tão absurda e contra asiáticos é tão velada, eu demorei pra realmente me tocar. Peraí, eu não sou branco (p. 80)."
Foram as vivências desse personagem que tocaram milhares de descendentes de asiáticos amarelos na internet e contribuíram para o fomento das discussões sobre raça, identidade e preconceito. Se você, como eu, é uma pessoa amarela no Brasil, facilmente se reconhecerá nessas páginas e conseguirá até atribuir nomes e rostos de seu próprio cotidiano às situações narradas.
Esse primeiro eixo traz, de modo potente e avassalador, a ideia de desumanização que é imanente às vivências asiáticas no país. Atravessando gerações, essa sensação constante limita e cerceia a jornada de todo um grupo no país, já que, como é apontado no prefácio, “é como se existisse uma barreira ou uma parede invisível ao nosso redor, delimitando até onde nos deixam seguir” (p.11).
Primeira versão da série de ilustrações "Hamoni".
O segundo grupo temático traz duas histórias que tratam da ancestralidade, da conexão com a história pessoal e familiar de cada núcleo. Esse é um tópico lindamente explorado em “Hanomi”, que apresenta uma figura com papel central nas culturas asiáticas: a avó. Através de uma narrativa que acontece entre avó asiática e neto brasileiro, a simbologia dessa relação é explorada: o afeto e a ligação entre os dois sujeitos é maior e ultrapassa barreiras linguísticas e culturais. Barreiras, inclusive, impostas pelo próprio preconceito a que os netos somos constantemente submetidos, já que, para muitos de nós, a busca pelo pertencimento na sociedade mobiliza o afastamento e a repulsa à origem, o que, naturalmente, nos impede de aprender a língua de nossos avós e desenvolver relações culturalmente significativas, gerando, sempre, o arrependimento.
Além disso, o enfraquecimento dessa conexão com nossa própria história e ancestralidade parte de um movimento que é, também, próprio das culturas asiáticas:
"(...) entre famílias asiáticas, às vezes, a palavra é escassa e as dores não são facilmente compartilhadas através da fala. Não há, na nossa cultura asiática, uma figura como a do griô africano, alguém que preserva e transmite histórias, conhecimentos, canções e mitos através da fala e da voz. Não porque não temos histórias, conhecimentos, canções ou mitos, mas porque a voz na cultura asiática é mais difícil de se acessar do que o silêncio." (p. 11)
Assim, distantes de nossos ancestrais e fadados a lugares específicos da sociedade brasileira, a comunidade amarela têm encontrado, em relatos como os de Monge Han, a legitimação de um sofrimento que passa a ter validade diante da coletividade, a partir do momento em que se reconhece, no outro, cicatrizes muito semelhantes às nossas. É por meio da partilha que se dá a nossa força, que se dissipa a culpa histórica que carregamos por não atendermos, muitas vezes, aos estereótipos, ou mesmo por termos perdido tanto de nossa própria história familiar.
Obras como a de Monge Han e outros novos artistas e autores contemporâneos da comunidade amarela são cruciais no processo de, enfim, encontrar o pertencimento que tem sido buscado há tantos anos e que, como consequência, fortalece o movimento de ocupar os espaços que nos foram restritos. Se uma das máximas claricianas está certa - e é muito difícil que não esteja -, a palavra é nosso domínio sobre o mundo. E é em busca e por meio dela que faremos ouvir nossas vozes amarelas.
Capa do livro.